Rosana Paulino: a arte da representatividade étnico-racial

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Rosana Paulino: a arte da representatividade étnico-racial

Encontro de formação com a presença da artista visual Rosana Paulino foi organizado pela equipe do projeto Educação com Arte (CENPEC/Fundação Casa)

Como a arte contemporânea brasileira pode contribuir para a educação? Tendo essa pergunta em pauta, Rosana Paulino falou a arte-educadores do projeto Educação com Arte: Oficinas Culturais, voltado a adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa na Fundação CASA (SP). O objetivo do encontro, que aconteceu no auditório do CENPEC Educação na última sexta, 17/05, foi promover a reflexão sobre o trabalho desenvolvido nas oficinas, principalmente as de artes visuais, com base em obras de artistas negros e negras.

Primeira mulher negra a expor na Pinacoteca de São Paulo

Rosana Paulino foi a primeira mulher negra a ter uma exposição exclusiva na Pinacoteca do Estado, em São Paulo (SP), ocorrida entre dezembro de 2018 e março deste ano. Em suas obras, ela apresenta reflexões e posicionamentos marcantes acerca de questões sociais como discriminação e racismo. Caracterizada pela diversidade de técnicas, que transitam entre desenho, pintura, bordado, cerâmica, fotografia e colagem, a produção discute o papel e a representatividade da população negra, especialmente da mulher afrodescendente, na sociedade brasileira.

“A arte contemporânea tem uma potência muito grande para se discutir a realidade do país. Durante muito tempo, no cenário artístico clássico e moderno, temas sociais como racismo e exclusão ficaram soterrados, como se não existissem. Com a entrada de artistas negros no mercado de arte, esses temas vieram à tona”, afirma Rosana.

A conversa com os arte-educadores se desenrolou junto à exibição de imagens representativas da extensa obra de Rosana, que produz e expõe desde os anos 1990. No bate-papo, a artista, que já atuou como professora, destaca a importância de se articular reflexões, memórias, experiências de vida e raízes culturais e familiares no trabalho artístico.

Raízes familiares e papel da mulher negra

A família e a ancestralidade é tema recorrente em várias obras, como “Parede da memória”. Com base em 11 fotos de mulheres de sua família, a artista criou uma série de patuás sobre os quais bordou as imagens, que se multiplicam, formando um “gigantesco jogo de memória”.

Você ignora uma pessoa, mas não pode ignorar 1.500 olhos sobre você.”

Rosana Paulino

Rosana Paulino, “Parede da memória”

Nesse trabalho, a ideia é de coletivo, multidão. A respeito do fato de não estar entre as fotografadas, Rosana comenta: “Eu não preciso me colocar enquanto imagem, efígie, porque já estou lá, representada pelo meu clã, minha ancestralidade.” A obra tem um sentido de cuidado: “Tanto eu me coloco sobre a proteção da minha família, como eu cuido dela, ao costurar cada patuá das pessoas que a formaram”.

“Aracnes”, do subsolo aos espaços nobres

Em “Aracnes”, trabalho exposto no Paço das Artes, localizado no centro de São Paulo, em 1996, Rosana põe em pauta a questão de gênero e do trabalho feminino: “Minha mãe trabalhou muito bordando para pagar a educação das filhas. Ela nos formou universitárias, pois dava valor para o estudo. Passou noites e noites bordando no escuro, junto com as vizinhas”. Por meio de fotos de familiares – mãe e tia – ela representa mulheres abrigadas em casulos. “O sentido dessa obra é levar essas mulheres, artistas, trabalhadoras, negras, periféricas, do subsolo para o espaço nobre do museu”, explica.

Rosana Paulino, “Aracnes”

“Bastidores” da violência doméstica

Já em “Bastidores” (1997), a artista borda sobre fotos de mulheres da sua família, que são representadas com a boca ou os olhos costurados. Nessa série, a influência são os relatos de mulheres vítimas de violência doméstica que iam prestar queixa na delegacia da mulher onde a irmã de Rosana trabalhava. “Em minha família não tínhamos histórias como essas. Então os relatos que minha irmã contava me marcaram muito. Ao trazer as fotos de suas familiares e ‘costurar’ com histórias de mulheres anônimas, meu trabalho migrou do microcosmo, familiar para o macrocosmo, o social”, revela.

Ao se ver representadas na arte, essas mulheres podem enxergar-se como pessoas no mundo, sujeitos de direitos, reconhecer seu papel na sociedade e lutar por mudanças”

Rosana Paulino

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Rosana Paulino, “Bastidores”

O trabalho com essas fotos tem uma intenção política clara. As mulheres negras no Brasil ocupam a base da base da pirâmide: recebem os menores salários, são as maiores vítimas de violência, têm menor acesso a bens e direitos fundamentais, como saúde e educação. Trata-se do racismo institucional. Com essa obra, Rosana procura não apenas denunciar, mas revelar outras possibilidades de ser e viver para essas pessoas. “Ao se ver representadas na arte, essas mulheres podem enxergar-se como pessoas no mundo, sujeitos de direitos, reconhecer seu papel na sociedade e lutar por mudanças”, afirma Rosana.

O fazer que nasce da gênese

Em resposta a pergunta do arte-educador Fabiano Silva sobre as várias formas de fazer manual, marcante no trabalho de Rosana, a artista revela: “Para mim, fazer é muito importante. No início da minha carreira, a arte conceitual era dominante, principalmente na universidade. O fazer manual, artesanal, era considerado inferior. Trazer esse tipo de ofício para a arte é marcar território”, destaca.

Trazer o bordado, a cerâmica, minhas experiências com a cultura popular, o terreiro, as matrizes africanas foi uma escolha intencional. Não vou deixar minha gênese para trás.”

Rosana Paulino

Rosana destaca a importância das experiências advindas da infância, herdadas no convívio familiar: “Quando criança, aprendi a bordar com minha mãe e minhas tias. Brinquei muito de fazer brinquedos de barro com minhas irmãs no quintal. Fiz muita bandeirinha para enfeitar as festas no terreiro de umbanda que frequentávamos. Por isso, trazer o bordado, a cerâmica, minhas experiências com a cultura popular, o terreiro, as matrizes africanas foi uma escolha intencional. Não vou deixar minha gênese para trás”, declara.

Arte e ancestralidade

Na série “Tecelãs”, a questão que move a artista é a ancestralidade: “O que nos forma? Quais são nossas influências?”. Para simbolizar essa busca, Rosana criou casulos enredando fios e tiras de algodão, nos quais incrustou elementos que representam suas influências culturais: búzios, santinhos, fios de cabelos, bonecas, brinquedos…

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“Tecelãs”

Em sua obra, o simbólico está associado de forma íntima ao trabalho artesanal, ambos associados às manifestações da arte popular e às culturas afro-brasileiras. “Desde a época da faculdade, eu usava o simbólico. No espaço acadêmico, essa forma de representação era vista como primitiva, mas eu fazia questão de marcar o lugar das raízes na minha produção”, revela. 

A representatividade é um aspecto importante para Rosana. Suas primeiras obras giraram em torno da reflexão sobre modelos impostos: desmonta a boneca Barbie e sobre isso desenha outros tipos de corpos. A discussão parte do físico-corporal e se amplia para o sociopolítico.

Minha obra é sempre uma tomada de posição política.”

Rosana Paulino

A produção e a representatividade da população negra no cenário artístico vem aumentando a olhos vistos. Segundo Rosana Paulino, três fatores influenciam essa mudança. Um fator é a entrada de negros  e negras nas universidades, fruto das políticas inclusivas e das ações afirmativas, como as cotas para a população afrodescendente.

Museu Afro Brasil (SP)

Outro fator é a criação de espaços como o Museu Afro Brasil, que, com a curadoria de Emanuel Araújo, dá luz a obras e artistas antes ignorados ou marginalizados. Um último impulsionador é a pressão internacional para que a arte de matriz afro e o trabalho de artistas negros estejam presentes nos museus e outras instituições culturais. O Brasil começou a ficar defasado em relação ao mercado internacional. Ela cita como exemplo o fato de sua primeira grande exposição de Rosana Paulino ter acontecido fora do Brasil, em Lisboa, após 24 anos de carreira.

Renata Felinto e Sidney Amaral como referências da arte negra

Cresce a demanda da população afrodescendente, que luta por se ver representada e está se fazendo presente nesses espaços de arte e cultura. Rosana cita o trabalho da artista educadora Renata Felinto, que gira em torno da tensão identidade e gênero, trazendo fortes influências de matrizes afro-brasileiras e explorando linguagens diversas. Outro artista destacado é Sidney Amaral, que representa, em suas pinturas, a identidade do homem negro contemporâneo. Rosana também ressalta a importância de exposições como “Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca” (Pinacoteca, 2015 a 2016) e “Histórias afro-atlânticas” (Masp, 2018).

Formação e troca de conhecimentos e experiências

O encontro de formação com Rosana Paulino foi uma sugestão dos arte-educadores da equipe do Educação com Arte, conta a coordenadora do projeto, Marília Rovaron:  “A ideia nasceu após uma visita que a equipe fez à exposição dessa artista na Pinacoteca, em março deste ano. Causou grande impressão em todos o trabalho de Rosana, a primeira mulher negra a expor nesse espaço tão importante e que traz um repertório com questões sociais tão fortes sobre racismo e representatividade étnico-racial”.

O evento, que ocorreu das 10 às 13h do dia 17/6, teve a participação dos 23 arte-educadores integrantes do projeto,  com a equipe de coordenadores. “Conhecer e dialogar com Rosana nos ajuda a refletir sobre como colocar em prática essas discussões em nossas práticas educativas com base no conhecimento que já temos sobre esses adolescentes, muitos deles negros, e pensar caminhos para retratá-los de forma politicamente coerente com nossos desejo de vida em relação a eles”, afirma Marília.

Encontro com arte-educadores no auditório do CENPEC

Arte como reflexão: a palavra dos educadores

Seguem depoimentos de alguns dos participantes do encontro de formação:

Foram muito positivos para todos nós os ensinamentos da Rosana. Contribui bastante para nosso trabalho na Fundação Casa com os adolescentes.”

Ronaldo Gomes de Souza, arte-educador (artes visuais)

O trabalho artístico e as ideias da Rosana têm uma representatividade muito grande para os jovens com quem a gente trabalha e para a população da periferia em geral. Eu me senti contemplado.”

Everton de Oliveira, arte-educador (dança de rua)

Como negro da periferia, falo para os meninos que eles podem se espelhar em mim como eu posso me espelhar neles. Eu me vejo neles, na periferia, pobre, e hoje sou um arte-educador. Eles podem chegar a ser professores, compartilhar conhecimento para outras pessoas, como a que aconteceu nessa formação com a Rosana Paulino: uma troca de conhecimentos e experiências.

A arte traz enriquecimento cultural. Uma pessoa com grande repertório cultural tem a mente aberta, consegue ver o mundo de uma outra forma. Grande parte das crianças e dos jovens da periferia não conseguem se reconhecer como parte desse mundo. É importante que eles se vejam como parte da sociedade, não como excluídos. A arte é um caminho para que eles se reconheçam como integrantes desse mundo, se interessem por estudar, buscar conhecimento. Principalmente uma arte como a da Rosana, que traz essa representatividade cultural da população negra e nos faz refletir sobre como essa parcela da sociedade ainda é tão discriminada e o quanto ainda temos a conquistar.”

Robson Romano, arte-educador (artes visuais)

Conhecer uma artista como a Rosana Paulino é muito importante porque ela traz um discurso muito mais próximo da nossa cultura do que a arte moderna ou concreta, consideradas hegemônicas pela história. Artistas contemporâneos colocam em pauta questões que interessam a todos, não só uma elite. Instituições como Museu Afro Brasil, um dos mais importantes que existem no Brasil atualmente, têm um papel fundamental nesse cenário, pois vão além das imposições de mercado.

Na educação, é fundamental abordar questões humanas, sociais, éticas, como a questão do racismo na arte com os adolescentes. Trazer um repertório artístico como o da Rosana Paulino é importante para ampliar nossa visão de mundo – tanto dos educandos, como dos educadores. O mundo que nos foi colocado já é antigo. Nós precisamos reescrevê-lo.”

Fabiano Silva, arte-educador (artes visuais)


Ver Rosana Paulino moveu meus mares internos. Como artista preta, poder compartilhar, observar, prestigiar, estudar uma outra artista preta, tão completa e repleta de referências, que está viva e fazendo um trabalho em prol da comunidade negra, é incrível e indescritível. As obras de Rosana me inspiram quanto artista que transita, e me colocam para refletir sobre como podemos combater o racismo e o sexismo por meio das artes visuais.
Além disso, Rosana é uma mulher preta viva, que tem muito o que contar e ensinar, como mais velha e mais sábia que nós. A importância da sua existência hoje no Brasil e imensurável, e a importância da sua produção mais ainda.
Hoje, o que mais me provoca a continuar estudando suas obras, a conhecer cada vez mais seu histórico, a compreender melhor os processos criativos, é a necessidade de sentir a arte como parte do nosso povo, da nossa gente. Rosana, para mim, é a urgência do Brasil em se entender quanto preto, quanto potência, quanto identidade.”
Isabela Alves, artista, estudante de Letras na Universidade de São Paulo e estagiária do Departamento de Difusão e Mídias do CENPEC


A exposição Rosana Paulino: A Costura da Memória reúne obras produzidas entre 1993 e 2018, como “Bastidores” (1997) e “Parede da memória” (1994-2015), decisivas do início de sua carreira. Estas remontam à sua narrativa pessoal e se apresentam como ponto de partida do percurso expositivo.

Acesse o site da Pinacoteca e veja as fotos da exposição.

Sobre a artista

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Rosana Paulino

Nasceu São Paulo, em 1967, é doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), especialista em Gravura pelo London Print Studio, de Londres e Bacharel em Gravura pela ECA/USP. Foi bolsista do programa da Fundação Ford nos anos de 2006 a 2008 e Capes, de 2008 a 2011. Em 2014 recebeu bolsa para residência em Bellagio, Itália, e em 2017 venceu os Prêmio Bravo e Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA), na modalidade Arte contemporânea.

Participa ativamente de diversas exposições, tanto no Brasil como no exterior, com destaque para a individual Atlântico Vermelho, no Padrão dos Descobrimentos em Lisboa, Portugal (2017) Mulheres Negras – Obscure Beauté du Brésil. Espace Cultural Fort Grifoon à Besançon, França (2014); e participações nas exposições coletivas: South-South: Let me Begin Again. Goodman Gallery, Cidade do Cabo, África do Sul (2017); Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca, Pinacoteca de São Paulo, SP (2015); Incorporations. Europália 2011, La Centrale Eletrique, Bruxelas, Bélgica; Roots and more: the journey of the spirits. Afrika Museum, Holanda (2009); IV Bienal do Mercosul, Rio Grande do Sul, RS; Côte à Côte – Art Contemporain du Brasil – Capcmusée d´Art Contemporain – Bordeaux, França, Bienal Brasil + 500 – Arte Afro-brasileira – Fundação Bienal de São Paulo, Brasil.

Assista ao vídeo a seguir e conheça mais do processo criativo e alguns dos trabalhos mais recentes desta grande artista:

Visite o site de Rosana Paulino e conheça mais de suas obras

Assista também ao documentário “Meninos de Palavra”, sobre experiências de arte-educação e letramento do projeto Educação com Arte

Ações afirmativas para quê? Conheça essa proposta de oficina para trabalhar com os estudantes o tema “discriminação e inclusão”