Currículo e educação integral

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Currículo e educação integral

Temática multimídia debate possibilidades de currículos na perspectiva da educação integral e inclusiva. Publicada originalmente no site Educação&Participação (Cenpec)

O currículo é uma tema em constante mutação. Assim como há diferentes concepções de currículo, não existe uma visão acabada do que vem a ser um currículo na perspectiva da educação integral e inclusiva.

Entretanto, ao propor o pleno desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens, a educação integral precisa dialogar com propostas curriculares que contemplem ampliação e integração de saberes; território; tempos e espaços; e gestão democrática.

Este material reflete sobre o que, como e por que ensinar, entre outras questões sobre currículo.

O que ensinar, como ensinar, por que ensinar: o que é currículo?

A especialista em currículo e docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) Cláudia Galian (2016) pontua que, no cotidiano, se trabalha com várias concepções de currículo: das puramente técnicas, que consideram currículo apenas como um documento que define os conteúdos a serem ensinados, às que englobam a prática do professor em contato com o aluno e o conhecimento, ou mesmo todas as práticas que acontecem na escola.

No entanto, fato é que “quando nos voltamos à discussão sobre currículo, estamos no âmbito das decisões concernentes a quais conhecimentos devem ser ensinados, o que deve ser ensinado e por que ensinar este ou aquele conhecimento. Diríamos melhor: mais do que ensinado, o que deve ser aprendido e por que aprendê-lo” (PADILHA, 2012).

Ou, nas palavras de Tomaz Tadeu da Silva (2010):

Sendo assim, falar de currículo é falar de uma seleção cultural de conhecimentos, saberes e práticas de ensino-aprendizagem que, produzidos em contextos históricos determinados, precisam ser ensinados pela escola a fim de garantir aos educandos o direito aos conhecimentos, produzidos socialmente, aos quais não teriam acesso por outras vias.”

SILVA, 2010.

Isso, evidentemente, não encerra a questão. Como diz Tomaz Tadeu da Silva, as diferentes teorias do currículo decidem quais conhecimentos precisam ser selecionados e buscam justificar por que “estes” e não “aqueles” devem estar na seleção. Para isso, recorrem a discussões sobre a natureza humana, a natureza da aprendizagem ou sobre a natureza do próprio conhecimento, da cultura e da sociedade, inclusive diferenciando-se entre si na ênfase que dão a esses elementos.

Já o sociólogo Michael Young (2007) defende que é importante haver uma distinção entre currículo e pedagogia. O currículo, segundo Young, encerra o conhecimento poderoso, que é aquele que dota o(a) estudante da capacidade de compreender o mundo de forma mais plena; já a pedagogia inclui, entre outros aspectos, a didática.  Na visão do autor, não cabe, no documento curricular, informar como o professor deve ensinar, pois esse aspecto refere-se ao âmbito do conhecimento profissional do docente. Ainda que, para o professor, não haja essa divisão na prática cotidiana, ela precisa estar clara para quem elabora o documento curricular.

Ora, o fato de existirem diferentes teorias indica que há diferentes posições na discussão sobre o currículo, não somente conceituais, mas também político-sociais e ideológicas, o que lhe confere um caráter dinâmico e temporário. “O currículo, por definição, nunca será definitivo. Nunca se chegará a um currículo que seja o ‘ponto final’”, disse Cláudia Galian, em palestra no Cenpec.


Currículo em processo

Galian adota a concepção de currículo em processo, que evoca o trabalho de José Gimeno Sacristán.

Para Sacristán, o currículo é um processo muito complexo, que envolve múltiplas dimensões e só pode ser compreendido quando se observa a articulação entre elas.

Na visão do autor, o documento curricular é apenas uma dessas dimensões, uma “carta de intenções” que, por sua vez, apresenta escolhas marcadas por relações de poder e que visam à formação de um determinado sujeito. Essas dimensões do currículo, que não esgotam todas as possibilidades, são:

Currículo prescrito: é o documento com a proposta curricular em si. O currículo prescrito tem um significado prático, uma vez que vai pautar a alocação de recursos e a produção de materiais, criar uma base para o trabalho do professor ou educador e, assim, influenciar as demais dimensões.
Ele também tem um significado simbólico, porque resulta de discussões, embates e interesses diversos – e, assim, vai evidenciar aqueles que tiveram mais força para se expressar na sua formulação.

Currículo em ação: compreende o que acontece, na prática, entre o professor e os alunos. É o conjunto de escolhas que o professor ou educador faz para desenvolver suas práticas de ensino e que está marcado pelas dimensões anteriores.

Currículo planejado:  produção dos materiais pedagógicos com base no currículo prescrito e que atende a outros interesses e interpretações, notadamente mercadológicos e das editoras: livros didáticos, guias curriculares etc.

Currículo organizado: conjunto de escolhas que a escola faz sobre a interpretação do documento curricular e do currículo planejado. Como dividir o tempo? Como utilizar espaços? Como localizar e trazer para a escola saberes da comunidade?

Currículo avaliado: conjunto dos conhecimentos para garantia da aprendizagem. Compreende avaliações escolares e externas. Verifica se o currículo prescrito “funcionou”. Assim, o currículo avaliado tende a influenciar o currículo prescrito.

> Em 2015, o Cenpec e a Fundação Victor Civita publicaram um estudo que analisou 23 currículos prescritos no Brasil e detectou forte influência das políticas de avaliação. Acesse.


Que sujeito queremos formar?

Como essas particularidades do currículo se relacionam à educação integral? O currículo pode comportar uma dimensão filosófica que reflete sobre o sujeito que se quer formar e sobre qual é o papel da escola para que isso aconteça.

Na perspectiva da educação integral, busca-se garantir o pleno desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens e se reconhece que isso só é possível quando se observam diferentes dimensões: física, afetiva, cognitiva, ética, estética e política, em uma proposta multidimensional e integrada. (Veja mais na temática Educação integral: um conceito em busca de novos sentidos.)

Essa opção pelo pleno desenvolvimento e por uma ampliação de repertórios não é neutra: reconhece crianças, adolescentes e jovens como sujeitos de direitos e opta pela cidadania, um conceito que, segundo Jaime Pinsky (2003), se traduz pelo exercício de direitos civis, políticos e sociais – direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei; direito a participar no destino da sociedade; direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranquila, entre outros.

Para a educação integral, o sujeito deve ser considerado em sua integralidade, inserido na sociedade sob uma perspectiva cidadã e autônoma, de exercício de plenos direitos. Uma discussão que antecede a proposta curricular. Dessa forma, uma primeira relação que se estabelece entre educação integral e currículo está nesta questão: que sujeito se quer formar?  

Cláudia Galian comenta esse ponto no depoimento abaixo.

Uma proposta em construção

Feita a opção por uma educação integral para formar um sujeito de direitos, cidadão e autônomo, cabe indagar quais conteúdos, saberes e práticas precisam ser contemplados em uma proposta curricular que objetiva o desenvolvimento desse sujeito.

Para a pedagoga e ex-secretária de Educação de Diadema (SP) e Embu das Artes (SP) Lucia Couto, a educação integral seria, em si mesma, “um conceito, uma nova abordagem curricular. Essa abordagem sintetiza o que queremos para uma sociedade”. Nesse sentido, concordamos que não cabe falar de currículo na educação integral ou para a educação integral, mas falar de currículo e educação integral.

No currículo considerado sob a perspectiva da educação integral, podem caber tanto os conteúdos expressos em propostas de currículo prescrito quanto o currículo oculto: aquele que está presente no cotidiano escolar sob a forma de aprendizagens não planejadas e que resulta das relações interpessoais desenvolvidas na escola, da hierarquização entre administradores, direção, professores e alunos e da forma como os alunos são levados a se relacionar com o conhecimento (SANCHOTENE, 2006).

Podem caber ainda as atividades oferecidas, tempo e frequência com que são ofertadas, as instituições envolvidas, os espaços utilizados na aprendizagem e os espaços de discussão e de gestão em uma arquitetura contextualizada, singular e “pertinente quando as escolhas curriculares são coerentes com as demandas e necessidades das crianças e dos adolescentes do território e não foram determinadas apenas pela disponibilidade de recursos existentes” (CENPEC, 2011, p. 92).

Podem caber a abertura da escola a novos conhecimentos e sua integração em uma proposta de democratização dos conhecimentos. Finalmente, podem caber todas as demais dimensões do currículo definidas por Sacristán e citadas por Cláudia Galian.

Não existe uma fórmula única de ofertar educação integral. Portanto, também não existe uma “proposta curricular integral” única, fechada. Assim como o conceito de currículo em si, o currículo na perspectiva da educação integral é, também, uma proposta em construção.

História do currículo e a perspectiva da educação integral

Conheça o histórico desse debate no vídeo Currículo e educação integral: fluxos e refluxos na história do Brasil.

Estar em construção significa que não há pressupostos?

O currículo na perspectiva da educação integral está em construção – mas isso não significa ausência de pressupostos.

Na educação integral, os diversos campos de aprendizagem se complementam, uma vez que, na vida cotidiana, se mesclam educação intencional (aprendidos na escola e nas organizações da sociedade civil – OSCs) e não intencional (vividos no cotidiano).

Para que essa complementação ocorra, é necessário tanto ampliar tempos e espaços de aprendizagens quanto integrar os diferentes campos.

Guia Políticas de Educação Integral, por exemplo, defende que a chamada parte diversificada do currículo – que constitui a oferta de conteúdos condizentes com as necessidades dos diferentes territórios – se integre às aprendizagens já oferecidas, constituindo um currículo uno e organizado.

Ora, isso somente é possível em um contexto de gestão democrática,  porque é necessário que os profissionais envolvidos tenham alguma forma de comunicação, diálogo e troca, além de evitarem hierarquizar as áreas do saber e reconhecerem a importância de todas as ações desenvolvidas com crianças, adolescentes e jovens em seu cotidiano. Na verdade, o ideal é mesmo trazer essas crianças, adolescentes e jovens, bem como a comunidade e as famílias, para a discussão sobre o currículo.

Ampliação e integração de saberes; território; ampliação e qualificação dos tempos e espaços; e gestão democrática constituem, portanto, aspectos que devem ser considerados em propostas curriculares na perspectiva da educação integral. É o que você verá nos blocos a seguir.


Território


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“É preciso derrubar os muros da escola. É sair com o grupo de professores para mapear o território – a igreja, o campo de futebol, o terreiro de candomblé – e ver que potenciais existem ali.” 

(Maria do Pilar Lacerda)

Utilizando como referência a Associação Cidade Escola Aprendiz e sua tecnologia social, o bairro-escola, a socióloga Helena Singer (2013) defende que um território educativo se configura quando há “o reconhecimento e o exercício do potencial educador de seus diversos agentes, ampliando e diversificando as oportunidades educativas para todos: um café se abre para cursos de informática em que adolescentes ensinam idosos; museus criam programações voltadas para públicos específicos do bairro […]; criam-se espaços de cultura geridos pela comunidade em escolas públicas do lugar; uma praça é revitalizada com intervenções criativas dos artistas e depois passa a ser utilizada para atividades de skate, malabares, horta ou basquete”. 

Reconhecer o potencial educativo do território é um dos aspectos a considerar em uma proposta curricular articulada à educação integral.

Não basta, porém, que o potencial do território “esteja lá”. É preciso que os diferentes atores no território – OSCs, instituições culturais, iniciativa privada, poder público, famílias, líderes comunitários, educadores sociais etc. – se envolvam na proposta.

É também importante, continua Singer, que a escola promova a apropriação desse território, desenvolvendo um projeto político-pedagógico (PPP) democrático e alinhado com os princípios da educação integral, envolvendo-se com as problemáticas locais e reconhecendo os saberes comunitários.

É uma revolução. Para a pedagoga e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Jaqueline Moll (2009), a valorização dos saberes populares como saberes legítimos a serem trabalhados/incluídos no currículo escolar implica “uma profunda mudança cultural, uma vez que revisita toda a tradição cartesiana que reduz os saberes e modos de expressão populares a irracionalismos, crendices e tradições infundadas”.

No debate virtual Currículo e educação integral, realizado em 3/5/2016, o desafio da relação entre currículo e território foi abordado por Maria Cristina Garavelo, coordenadora do projeto Cidade Escola, de Porto Alegre (RS). Assista.

Saiba mais:

No Programa Jovens Urbanos, o reconhecimento do potencial educativo do território e seu mapeamento está no cerne de algumas das principais estratégias, como as explorações e os registros cartográficos.

Para o Jovens Urbanos, o território é primordial na concepção e no desenvolvimento dos projetos, na medida em que leva o jovem a pensar sobre seu bairro, sua realidade, espaços e relações sociais nele presentes, para, a partir disso, elaborar uma intervenção que pode articular diferentes atores. Saiba mais no vídeo abaixo.

Para Cláudia Galian, uma proposta curricular deve não apenas dar espaço para que a escola e o professor possam fazer escolhas, mas também levar em consideração o território e a comunidade em que o aluno se insere. Saiba mais.

O território não necessariamente se identifica com o que se entende por cidade, mas quando esta é trabalhada como um grande espaço educador, temos o conceito de cidade educadora.

Iniciativa indutora de educação integral em todo o País, o Programa Mais Educação propõe também a articulação da proposta curricular com o potencial do território. Leia aqui.

Na plataforma Educação&Participação:

Materiais que abordam as relações entre currículo e território:

Oficinas que abordam as relações entre currículo e território:


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Gestão democrática


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“A gestão democrática é estratégica […]. Se, na educação integral, defendemos que o indivíduo desenvolva todas as suas potencialidades, isso inclui sua liberdade
e suas escolhas.” 

(Norma Sueli de Souza Carvalho)

A gestão democrática é um conceito que pode tanto se realizar no âmbito da macropolítica, na definição de políticas públicas de educação; como na micropolítica, nas discussões sobre o que ocorre na unidade escolar, por exemplo – e as relações e espaços de planejamento conjunto em que ela se materializa são múltiplos.

Envolvem as relações das secretarias com as escolas; as relações das escolas com dirigentes, supervisores, professores e coordenadores pedagógicos, com a comunidade e com os alunos; as relações entre diferentes escolas num mesmo território; e entre todos esses atores.

Envolvem ainda consultas públicas, conselhos municipais, conselhos de educação, grêmios estudantis etc., que não devem funcionar como meras chancelas de decisões preestabelecidas já tomadas e/ou encaminhadas pela equipe ou grupo dirigente da escola.

Os processos de tomada de decisão na gestão democrática, por sua vez, apontam para uma multiplicidade de assuntos que podem ser abordados: alocação de recursos, alimentação, infraestrutura… currículo.

Do ponto de vista do currículo e da educação integral, a gestão democrática dialoga diretamente com a valorização dos saberes populares e do cotidiano como saberes curriculares, uma vez que convida pais, famílias, comunidade e educadores sociais à participação, continuamente.

Como consequência, um dos efeitos mais diretos da gestão democrática pautando e alterando uma proposta curricular se faz sentir na definição do projeto político-pedagógico (PPP) da escola, que, inclusive em termos legais, requer a participação da comunidade e dos diferentes agentes que se fazem presentes no processo de ensinar/aprender, como professores, coordenadores pedagógicos e mesmo educadores sociais. Ao mesmo tempo, essa ação proporciona à comunidade o acesso aos conhecimentos socialmente reconhecidos.

A gestão democrática dialoga também com a necessidade de dar voz e empoderar os educandos, um processo que não pode ficar apenas no discurso: não apenas é preciso consolidar canais de comunicação e participação para que crianças, adolescentes e jovens se sintam autores e protagonistas nas questões escolares, como é preciso partir do princípio de que eles são capazes de produzir, criar e intervir – princípio este que também se aplica a professores e educadores.

Assista ao vídeo com o depoimento de Solange Feitoza Reis, do Núcleo de Educação Integral do Cenpec, a respeito da gestão democrática.

Saiba mais:

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“Na minha comunidade, que fica na zona rural, falta muita informação, conhecimento, tem defasagem de ensino. Com o Conselho, já participei de oficinas, mesas redondas com autoridades…” (Rosana Maria Martins, 21 anos).

Por meio de diferentes núcleos temáticos, que realizam oficinas com duração média de três dias, os participantes do Conselho Municipal de Jovens e Adolescentes do Meio Rural de Diamantina (COMJAMRD), em Minas Gerais, discutem e aprendem assuntos que vão de políticas públicas e legislação até equidade de gênero, drogas, sexualidade e doenças sexualmente transmissíveis (DSTs).

Os temas tratados nas oficinas são escolhidos pelos próprios jovens e contam com o apoio e suporte de parceiros como a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

Iniciativa da OSC Projeto Caminhando Juntos (Procaj), grande vencedora nacional da 11ª edição do Prêmio Itaú-Unicef com o projeto Eu, você e a escola, educação que transforma em parceria com a Escola Estadual João César de Oliveira, o COMJAMRD é uma experiência que alia transmissão e democratização de conhecimentos e gestão democrática, em uma estratégia ao mesmo tempo formativa e deliberativa: os jovens empoderados também passam a intervir nas políticas públicas. Leia a reportagem completa com essa e outras experiências.

>  Materiais sobre currículo e gestão democrática:


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Ampliação e integração de saberes


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“A educação integral implica a revisão dos currículos escolares para a valorização tanto dos saberes clássicos (patrimônio da humanidade nos vários campos) quanto dos saberes cotidianos do mundo da vida.” (Jaqueline Moll)

Ponto central da educação integral, propor o pleno desenvolvimento dos educandos em uma perspectiva multidimensional necessariamente implica ampliar os saberes e democratizá-los.

Isso significa não apenas dar conta dos conhecimentos tidos como universais, acadêmicos, científicos, mas também valorizar os saberes cotidianos, que se inserem no território por onde circulam e vivem os educandos. “A educação integral pressupõe uma ampliação de repertório e o reconhecimento dos diferentes saberes presentes na escola, na família, na comunidade, que são fundamentais para o desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens, tornando-se um eixo fundamental na ampliação de estratégias e oportunidades para eles”, diz a gerente de Educação da Itaú Social, Patricia Mota Guedes, em entrevista.

Os efeitos na aprendizagem são sensíveis. O Guia Políticas de Educação Integral, por exemplo, informa que a ampliação do acesso às diferentes linguagens e manifestações artísticas, culturais, esportivas, digitais, assim como à participação na vida social do território contribui para que crianças e adolescentes “atinjam patamares mais elevados de letramento e melhor rendimento escolar”.

É preciso, porém, que esses saberes sejam articulados e integrados em uma intencionalidade pedagógica. “A organização da rotina envolvendo as atividades do núcleo comum e da parte diversificada [do currículo] pode ser prevista em um mesmo período, integrando-se, dialogando, ampliando as possibilidades interdisciplinares, favorecendo a integração curricular. Ambas podem ser lúdicas e desafiadoras. Ambas podem colocar em jogo o que sabem as crianças e adolescentes, podem garantir circulação e construção de conhecimento, promover o desafio e o espírito investigativo”, defende o Guia.

O resultado final é a constituição de um currículo que supera a própria dicotomia entre núcleo comum – tradicionalmente mais prestigiado – e parte diversificada.

Por sinal, vale mencionar que o prestígio das disciplinas do núcleo comum é uma construção histórica. É o que defende Montserrat Moreno (1999), catedrática emérita do Departamento de Psicologia Básica da Universidade de Barcelona, que analisa, desde a Grécia antiga, o prestígio de que gozam disciplinas como Matemática, Física, Química, Biologia, Língua, Literatura, História, Geografia etc. “Se a história tivesse seguido outras rotas […], muito possivelmente nossa maneira de raciocinar e nossa lógica – e naturalmente nossa ciência – também seriam diferentes”, diz Moreno.

Ainda a respeito da dicotomia núcleo comum versus parte diversificada, Miguel Arroyo (2013), professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE-UFMG), vê que a própria nomenclatura esconde uma lógica segregadora: “Comum ou aquelas verdades, conhecimentos que não trazem as marcas das diversidades regionais ou da diversidade de contextos concretos de lugar, classe, raça, gênero, etnia. Comum a um suposto ser humano, cidadão, genérico universal […]. O diversificado é o outro, não universal. Consequentemente, os saberes […] dos diversos não são componentes do núcleo comum, não são obrigatórios. Nessa lógica serão secundarizados”.

Portanto, integrar os saberes ampliados também passa, para Arroyo, por superar as “velhas dicotomias e hierarquias”, a fim de avançarmos no reconhecimento dos saberes dos mestres e dos educandos.

No debate virtual Currículo e educação integral, realizado no dia 3/5/2016, os desafios da articulação e integração dos saberes no currículo sob a óptica da educação integral foram comentados por Cláudia Galian. Assista.

Saiba mais:

>  No projeto #integr@ção, parceria entre o Conselho Pinheirense do Bem-Estar do Menor (Copbem) e a Escola Municipal de Ensino Fundamental Dr. Emir de Macedo Gomes, em Pinheiros (ES), e um dos vencedores da Regional Rio de Janeiro da 11ª edição do Prêmio Itaú-Unicef, professores como Cleidiane de Souza Duarte experimentam uma integração curricular entre o conteúdo acadêmico e os conhecimentos a que os educandos têm acesso na OSC. Assista.

“Nós já iniciamos esse diálogo. Algumas reuniões já foram agendadas e a previsão é que sejam feitas bimestralmente”. Dinês Rangel de Almeida, da Associação Bem Faz Bem, conta o início do processo de integração curricular entre a OSC e a Escola Municipal Manoel Coelho em Campos dos Goytacazes (RJ). Ambas executam o projeto Aprender Faz Bem, vencedor nacional na categoria microporte da 11ª edição do Prêmio Itaú-Unicef. Conheça o projeto.

Na plataforma Educação&Participação:

Materiais que abordam ou tangenciam o tema das relações entre currículo e ampliação e integração de saberes:

Oficinas que relacionam currículo e ampliação e integração de saberes:


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Tempos e espaços


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“Educação integral é ampliar tempos, espaços e sujeitos. Não é só ampliar o tempo: a questão fundamental é o que se faz com ele, qual a proposta pedagógica desenvolvida nesse tempo a mais.” (Alexandre Isaac)

Na medida em que novos conhecimentos entram na percepção e ocorrem uma ampliação e integração de saberes, é preciso considerar a necessidade de mais tempo para trabalhá-los, mas de que forma? Apenas estender a jornada não é suficiente.

A jornalista e pesquisadora Christina Stephano de Queiroz (2015), por exemplo, defende que a própria reorganização do currículo requer atenção redobrada na jornada ampliada. Para ela, é importante intercalar disciplinas da base comum a outras chamadas extracurriculares, a fim de evitar que os alunos percebam um período como horário de lazer e outro como horário de aprendizagem, “algo que cria uma percepção de importância distinta entre as aulas”.

Ao propor essa intercalação entre disciplinas, a pesquisadora acaba por tocar em um ponto importante: a grade curricular. Mais do que ampliar a jornada, é preciso que a proposta pedagógica diga o que fazer com o tempo a mais. É preciso qualificar o tempo, oferecendo diversidade de conteúdos, “especialmente os ligados à arte, à cultura, às modalidades esportivas e à ludicidade, flexibilizando os tempos e promovendo novos agrupamentos de alunos por meio do trabalho com oficinas e projetos”.

A qualificação do tempo ocorre também numa proposta mais aprofundada para a reorganização da grade: possibilitar que, em cada disciplina, seja dado mais tempo para os alunos aprenderem. Diz o Guia: “reorganização do tempo das aulas do núcleo comum, particularmente no Ensino Fundamental II, como as aulas ‘dobradinhas’, para que haja mais tempo de envolvimento dos alunos com a aprendizagem, maior interação do professor com os alunos e menos fragmentação do tempo e dos conteúdos. Esse pode ser um importante exercício para pensar o trabalho pedagógico a partir da necessidade das crianças e adolescentes e a relação com os tempos de aprendizagem. As ‘grades’ merecem especial atenção nesse processo”.

Finalmente, outra dimensão diz respeito ao tempo que os professores permanecem na escola, especialmente quando o período ampliado ocorre dentro da instituição escolar. É que os professores, permanecendo mais tempo na unidade escolar, estabelecem vínculos mais fortes e ganham novas oportunidades para planejamentos individuais e coletivos.

O tempo, porém, não pode ser desvinculado do espaço. Não faz sentido uma proposta de educação integral e, por extensão, curricular que mantenha os educandos presos na mesma sala de aula “por mais tempo”, sem aproveitar a riqueza de outros espaços educativos.

Esses espaços podem ser primeiramente os que já existem na escola, mas, muitas vezes, são subutilizados, como o auditório, a sala de leitura, a biblioteca, a sala de informática, o laboratório de Ciências, a cozinha, o refeitório, as áreas externas da escola e a quadra esportiva.

Entretanto, são também os espaços “extramuros”. É importante considerar que as crianças e os adolescentes não devem permanecer o tempo todo dentro das unidades educacionais. As organizações sociais e os diferentes equipamentos públicos do entorno, como unidades básicas de saúde, bibliotecas, centros esportivos e culturais, museus, praças e parques, são potenciais parceiros para o desenvolvimento de uma proposta pedagógica que contemple a apropriação do território e o envolvimento de diferentes atores sociais na educação de crianças e de adolescentes.

Isso, evidentemente, requer uma articulação que responda a uma intencionalidade pedagógica e retome a apropriação do território como território educativo, a valorização, ampliação e integração de diferentes saberes e mesmo a gestão democrática na discussão dos conteúdos curriculares que serão trabalhados com os educandos. Como se vê, currículo e educação integral dialogam em um movimento circular.

Veja o que a especialista Cláudia Galian tem a dizer sobre o tempo.

Assista ao debate sobre espaços de aprendizagem entre a arquiteta, consultora e pesquisadora do Grupo Ambiente Educação (GAE-FAU-UFRJ) Beatriz Goulart; e a psicóloga e pedagoga Grace Luciana Pereira.

Saiba mais:

> Fundada em 2015, a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Porto Novo, em Porto Alegre (RS), tem utilizado diferentes espaços educativos dentro da unidade escolar em uma proposta curricular na perspectiva da educação integral e em concordância com princípios do Programa Cidade Escola.

Ouça o áudio da coordenadora pedagógica da escola, Carolina Derós, contando como tem sido essa experiência.

Sobre currículo e ampliação e qualificação de tempos e espaços:


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Em debate

O que cabe no currículo

Não existe consenso sobre o que cabe ou não cabe no currículo. Para alguns, o currículo é apenas um documento, uma listagem. Para outros, em oposição, engloba todas as práticas que acontecem, por exemplo, dentro da escola – ou, se o foco for a educação integral e sua perspectiva de ampliação de espaços, também o que acontece fora da escola, em outros espaços educativos.

O currículo responde a uma seleção de conhecimentos e à tomada de uma postura, que pode tanto restringir o acesso a esses conhecimentos como, de acordo com o que defende a educação integral, democratizá-los.

Finalmente, há, na discussão sobre o currículo, aquilo que está expresso e aquilo que está oculto, assim como temas que respondem ao mundo contemporâneo e que ora entram nas propostas curriculares, ora são retirados, como as questões de gênero, raça e etnia, sexualidade etc.

Ouça o comentário de Cláudia Galian e reflita: para você, o que uma proposta de currículo na perspectiva da educação integral deve englobar?

Qual currículo?

Discutir currículo é discutir escolhas. Significa entender que haverá vozes que serão ouvidas e vozes caladas ou distorcidas. Significa também compreender que uma proposta curricular sempre pautará um tipo de sujeito que se quer formar.

Dito isso, qual proposta de currículo devemos defender na educação integral? Um currículo flexível para o Ensino Médio, por exemplo, ou um currículo nacional comum?

As propostas contidas em documentos como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o Plano Nacional de Educação (PNE) e os macrocampos do Mais Educação são suficientes? Assista ao que diz Cláudia Galian sobre as relações de poder e comente.

> A segunda versão da BNCC trouxe avanços no sentido de garantir uma perspectiva integral à educação básica. Entre as alterações, destacam-se a definição de objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, que mencionam a formação humana integral,  e a organização da Base por etapas. Saiba mais.


Entre o querer e o fazer

A discussão sobre currículo e educação integral não pode ser dissociada das condições objetivas que se encontram no território, tampouco daquelas que estão no interior da unidade escolar.

Embora, como vimos, seja necessário observar o potencial educativo do território, por vezes, essas mesmas condições também se traduzem em dificuldades e desafios: falta de acesso a bens culturais, problemas de infraestrutura da escola, formação insuficiente de professores etc. – e, no contexto político atual, corte de verbas.

Como lidar com esses desafios? Como transitar da proposta de um currículo ideal na perspectiva da educação integral para um currículo possível diante das condições materiais? A proposta curricular sozinha pode dar conta desses dilemas?

Como enfrentar o desafio do baixo investimento na educação? É possível encontrar propostas curriculares criativas que consigam driblar as dificuldades financeiras e de infraestrutura e se traduzam em melhorias na aprendizagem dos alunos? Ouça o comentário da professora Cláudia Galian e entre nesse debate.

 A voz dos estudantes

“O currículo é monopólio dos especialistas, e a pedagogia é monopólio dos pedagogos. A alienação começa com os professores: se você pergunta para o professor por que ele ensina o que ele ensina, ele não faz a menor ideia.”

A frase da educadora e linguista Rosa-María Torres Del Castillo, proferida no Seminário Internacional sobre Inclusão de Adolescentes e Jovens no Ensino Médio, em Belo Horizonte (MG), externa a dificuldade de dar voz a professores, educadores – e educandos – no currículo. “A Base Curricular está sendo discutida e não podemos participar diretamente dessa discussão”, diz o jovem José Otávio Pantoja de Azevedo.

Há propostas que buscam esse diálogo, como os grupos de escuta realizados em Itabira (MG) no âmbito da assessoria para o Plano de Educação Integral, realizada pela Itaú Social com coordenação técnica do Cenpec, em parceria com a Secretaria de Educação. Paralelamente, a plataforma Educação&Participação realizou um especial com as demandas dos jovens presentes em Belo Horizonte. Como dar voz aos estudantes?


Quem pauta o currículo

“Atualmente, a Finlândia está refazendo seu currículo escolar, e eles têm os melhores resultados no teste PISA […]. Quais são os objetivos da mudança? Dar mais sentido à aprendizagem da criança: na Finlândia, eles sabem que os estudantes estão mostrando maiores níveis de insatisfação.”

A palestra de Rosa-María Torres Del Castillo no Seminário Internacional sobre Inclusão de Adolescentes e Jovens no Ensino Médio trouxe experiências de outros países, como a que acontece na Finlândia, que, não obstante os bons resultados em avaliações internacionais, rediscute seu currículo.

No Brasil, a professora Cláudia Galian destaca os riscos de alguns posicionamentos que procuram pautar o currículo nos resultados adquiridos nesses testes e em avaliações internas.

Há outros, como aqueles que procuram atender tão somente o mercado de trabalho, ou que respondem apenas aos conteúdos interpretados e distribuídos nos materiais didáticos, a partir das expectativas das editoras. Afinal, quem vem pautando a discussão de currículo e educação integral? Ouça o comentário e deixe sua opinião.

Currículo e redução das desigualdades

“É preciso considerar que a educação integral pode ser uma oportunidade estratégica para promover a equidade no contexto da educação brasileira”, diz  a coordenadora técnica do Cenpec, Maria Amabile Mansutti. A professora Cláudia Galian comenta que a escola, em particular, tem um papel na redução das desigualdades, ainda que não se possa cobrar dela a resolução de todas, uma vez que já está inserida numa sociedade desigual, que em muito extrapola seus muros e seu alcance.

Mesmo assim, a instituição escolar “pode muita coisa” e, para a professora da USP, uma das maneiras pelas quais ela pode atuar na redução das desigualdades é por meio do currículo.

Considerar, numa proposta curricular, que os alunos vêm de contextos muitos diversos rompe ainda com uma noção errônea de meritocracia: a de que, bastando apenas o aluno se esforçar, ele tudo pode.

Como uma proposta de currículo e educação integral pode ser pensada para reduzir desigualdades não apenas socioeconômicas, mas também cognitivas, que subsistem entre os alunos e refletem o contexto social de onde eles vêm?

Vídeos: mais sobre currículo e educação integral

Referências bibliográficas


Créditos

Texto e conteúdo: João Marinho de Lima Neto e Vanessa Nicolav
Orientação: Solange Feitoza Reis e Julio Neres
Edição: Marcia Coutinho R. Jimenez
Vídeo: Vanessa Nicolav
Arte e pesquisa de imagens: Vanessa Nicolav, Thiago Luis de Jesus e Suélio Victor Reis Nunes e Silva
Leitura crítica Maria Amabile Mansutti, Alexandre Isaac e Guillermina Garcia


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